Abdias do Nascimento deixa um legado histórico e incalculável à cultura
Redação do DIARIODEPERNAMBUCO.COM.BR
25/05/2011 | 11h50 | Memória
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Abdias do Nascimento deixa um legado histórico e incalculável à cultura. Imagem: Carlos Moura/CB/D.A Press/Arquivo
* 24/05/2011 - 15h55 | Morre no Rio de Janeiro, aos 97 anos, o ativista Abdias do Nascimento
O homem Abdias do Nascimento tinha um orgulho dito em vida: o de nunca fraquejar diante do racismo, o de arrombar portas e bater no peito para denunciar a dor de ser discriminado pela cor da pele. O menino de infância adocicada pelo cheiro vindo do tacho da mãe cozinheira e pela suavidade dos acordes do violão tocado pelo pai operário gritou quando a violência racial lhe deu as primeiras rasteiras.
"Era tanta mágoa, tanto desapreço. Eram tantas palavras malditas ditas contra o negro", lamentava.
Na manhã de terça, aos 97 anos, o ator, diretor, dramaturgo, artista plástico, poeta e militante Abdias do Nascimento morreu sem ver o Brasil como sonhou, com grandes líderes negros a chefiar o Estado, as grandes empresas nacionais e os veículos de comunicação. Despediu-se da vida, no entanto, consciente de que a conquista por maior respeito e visibilidade passa por sua trincheira de luta. É, sem dúvida, o maior símbolo da negritude no Brasil, sobretudo por associar as ações políticas à arte. Foi ele quem idealizou, fundou e dirigiu o Teatro Experimental do Negro (TEN), em 1944, atuando diretamente na modernização dos palcos nacionais ao colocar a problemática dos afrodescendentes no palco.
"Criei o Teatro Negro Experimental não só com o objetivo do combate, mas para ampliar os horizontes da população afrodescendente, resgatando a história do negro, os valores culturais e, principalmente, oferecendo alternativas criativas para a construção de um futuro de melhor qualidade da população de origem africana no Brasil", dizia Abdias do Nascimento.
O Teatro Negro Experimental surgiu em diálogo com Os Comediantes, companhia que montou Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues, em 1943, colocando o Brasil par a par com as inovações das artes cênicas. Abdias do Nascimento foi a público convocar negros e negras para atuarem nos palcos. Vieram operários, dançarinos de gafieira, sambistas do morro, empregadas domésticas e passistas das escolas de samba. Juntos, ocuparam instalações da UNE, foram alfabetizados, politizados e receberam aulas de interpretação com o professor Ironildes Rodrigues. Estrearam com montagem própria em maio de 1945, no sofisticado Theatro Municipal do Rio de Janeiro, com o espetáculo O imperador Jones, de Eugene O′Neill. Grandes intérpretes foram formados no TEN. Ruth de Souza, dama negra do teatro brasileiro, é uma delas. O TEN estimulou a dramaturgia própria como um norte estético.
"Tinha ido ao Peru com a Santa Hermandad Orquídea, grupo de poetas argentinos e brasileiros do qual fazia parte. Em Lima, assisti à peça O imperador Jones, estrelada por um ator branco, Hugo D`Evieri, que estava pintado de preto. Saí de lá refletindo sobre essa situação e quis criar um grupo no qual os atores negros pudessem chegar ao palco."
Já símbolo da resistência do negro no país, perseguido e preso pelo governo totalitário de Getúlio Vargas, Abdias do Nascimento recebeu apoio de intelectuais e artistas em sua empreitada histórica nos palcos. Trocou experiências estéticas com Augusto Boal, Nelson Rodrigues e comemorou dois anos de atividade com trecho do espetáculo Otelo, de William Shakespeare. Em cena, a dama Cacilda Becker contracenava com os atores negros. O que provocou um escândalo na elite branca que consumia teatro burguês. Em 1957, o TEN participou da montagem de Perdoa-me por me traíres com o próprio Nelson Rodrigues contracenando com Abdias do Nascimento, Léa Garcia e Sônia Oiticica.
Ações múltiplas
O impacto do TEN ultrapassou os palcos. Abdias organizava ações sociais, como a Beleza Negra e o Concurso de Artes Plásticas, com o tema Cristo negro. Estava por trás de uma série de convenções, congresso e semanas para discutir a situação do negro no país. Editou o jornal Quilombo. O TEN estimulou ainda a criação de companhias similares e seguiu em atividade até 1968, quando Abdias do Nascimento foi forçado a sair do país e viveu 13 anos no exílio. Foi justamente nesse período que ele trocou a atividade artística pela militância política direta. Beneficiado pela Anistia, investiu na carreira política, assumindo cargo de deputado federal e senador da República pelo PDT, sempre reivindicando um lugar para a cultura negra na sociedade.
A coerência na carreira artística e política, que começou na década de 1930, quando integrou a Frente Negra Brasileira, em São Paulo, fez de Abdias do Nascimento um nome incontestável no Brasil e no exterior. De alma delicada, gostava tanto de arte e orquídeas que não conseguia viver longe delas. O mestre será enterrado hoje, para quem não sabe, dia mundial dedicado à África, berço de todos.
"Abdias do Nascimento partiu para Orum, o grande mestre. Obrigado por tudo", diz o rapper Gog.
Por Sérgio Maggio, do Correio Braziliense, com colaboração de Felipe Moraes e Maíra de Deus Brito
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